quinta-feira, 23 de agosto de 2012

JORNAL `A JANELA: Origem da família Mota

JORNAL `A JANELA: Origem da família Mota: Mota é um apelido de família da onomástica italiana de origem toponímica cuja origem é pré-romana. Este sobrenome possui muitas variantes, ...

domingo, 19 de agosto de 2012


A Mala
(arremedo de romance escrito numa viagem pela Europa)

Carlos D. Mota Coelho

Com muito custo cheguei à esteira de bagagem e vi a minha mala. Todas as demais tinham sido retiradas pelos passageiros que, ao contrário de mim, não tiveram a desventura de se sentarem na última fileira de poltronas, nem se perderem pelos labirintos daquela imensidão de aeroporto, por conta da mais completa ignorância, sobretudo quanto àquele ininteligível idioma. Que alívio ao vê-la ali, ainda que absolutamente solitária! Esperei que a esteira rolante a trouxesse bem perto de mim, enquanto, pelo vidro, era possível perceber que a temperatura externa estava muitos graus abaixo da sentida por mim naquele saguão artificialmente aquecido. E assim que ela chegou agarrei-me à sua alça e tentei retirá-la daquele tapete giratório de metal, louco por abri-la e dela retirar o meu casaco de inverno. Num primeiro momento ela nem se abalou e quase que me levou junto. Com muito esforço consegui arrebatá-la e jogá-la ao chão, sem entender aquele descomunal peso, que logo atribuí não a ela em si, mas a mim mesmo, supondo-me enfraquecido pela extenuante viagem e pelo fato de que eu simplesmente dormia a cada instante em que os comissários distribuíam a comida de bordo.  Apesar do peso, eu estava certo de que ela era minha, a mesma que eu portava quando do embarque, recheada com as minhas roupas, sapatos, acessórios, uma tora de fumo, algumas cumbucas de palha e um pouco de feijão e farinha, necessários à eventualidade de me faltar comida, eu que viajei sem um tostão no bolso. Temeroso do frio lá fora, logo cuidei de levá-la a um canto, longe da bisbilhotice alheia, para que dela eu pudesse retirar um casaco mais quente do que aquele em que eu me achava metido. Reuni então todas as forças que me restavam e consegui arrastá-la rumo a um local ermo, próximo a um vão de escada. Se eu tivesse dinheiro para alugar um, com certeza eu teria me valido do carrinho de bagagem. Mas não! Olhei então para um lado e para outro, rompi o lacre de plástico e puxei um pouquinho o seu zíper. Mas assim que enfiei a minha mão em seu interior, certo de que alcançaria o meu desejado casaco, deparei com algo rijo, feito tijolos ali arrumados. Passei a mão de um lado para outro e a mesma sensação tátil. Tentei mergulhá-la mais um pouco e nada de sentir a maciez das roupas ou os grãos de feijão dentro de um saco. Gelei! Imaginei alguma pegadinha do amigo que me facilitou a fuga, introduzindo nela os tijolos de cerâmica que imaginava estar em seu interior. Mais gelado fiquei ao imaginar estar ali tijolos de maconha ou cocaína, por mim trazidos feito mula, ludibriado por aquele bando de vagabundos que me estimulou a fugir de meu país. Quase que a abandonei ali, mas um funcionário do aeroporto, vendo-me naquela aflição e supondo que era por conta de seu peso, se prontificou a me ajudar a retirá-la. Fechei imediatamente o seu zíper e a companhia daquele funcionário aliviou a minha tensão ao transpor o portão da alfândega. Logo me vi no saguão de saída e mais uma vez tencionei abandonar aquela maldita mala. Em meio àquele vaivém de pessoas minha cabeça girava a mil, ora imaginando a abordagem de seu verdadeiro dono, algum passageiro que levou a minha mala pensando que fosse a sua, ora imaginando topar com o destinatário daquela muamba, pronto a me apagar em algum arrabalde próximo. Criei coragem e dela então me afastei, pensando em não vê-la nunca mais. Mas quando estava prestes a ganhar a porta rotatória de saída, uma mulher me alcançou, dizendo palavras por mim incompreendidas, mas gesticulando em direção à maldita, como que a dizer que eu havia me esquecido dela. Voltei para junto dela e ali fiquei por alguns instantes parado, sem saber que rumo tomar. Mas assim que a bisbilhoteira se afastou, tentei novamente da mala me desvencilhar, levando-a até o banheiro próximo. Com muito custo consegui arrastá-la até o reservado. Chaveei a porta e num arranco abri o seu zíper e que surpresa: maços e mais maços de dinheiro, de suas profundezas à superfície! Não me contive e dei um grito, seguido de toques na porta, dados por algum usuário ou pelo faxineiro que me viu entrar. Então me contive, dela arrebatei alguns maços de notas e os enfiei nos bolsos da calça. À saída, chamei um carregador e entrei numa loja, onde comprei o mais caro casaco e um chapéu. Ao sair, um susto, pois o carregador de malas não estava ali à porta. Vi então a minha brevíssima vida de milionário virar pó. Olhei ao redor tentando encontrá-lo, mas a hipótese de ele ter sido pego em meu lugar me aliviou. Além do mais, aqueles maços de notas por mim apanhados já eram suficientes para eu me manter por muitos dias, até que eu arranjasse um emprego ou um trambique. Dando-a resignada e propositadamente por perdida, apressei o passo rumo à porta, quando fui alcançado pelo carregador que ma devolveu aparentemente intacta, sem que eu entendesse bulhufas de sua tentativa em justificar aquele aparente desaparecimento seu. Remunerei-o regiamente, quando ele, por conta de sua falta, sequer imaginava que eu fosse o (lhe) pagar. Logo cheguei à imensa fila de táxis, apalpei o bolso e dele saquei a minha carteira de cigarros, acendi um e me pus a apreciar aquela paisagem para mim tão diferente. De repente, outro susto, pois de um carro que ali estacionou desceu um sujeito mal encarado carregando uma mala idêntica à minha ou a ambas. Meu coração disparou em pensar em ter que devolver aquela ao pé de mim, recebendo a recheada de molambos, trastes e feijões. Aos poucos ele foi se aproximando de mim e eu já me antecipando em gestos de devolução, mas ele, embora reparando a minha mala, passou direto, o que me deu a certeza de uma mera coincidência. Aliviado, apaguei o cigarro e mirei em direção à extensa fila que dava voltas em torno do ponto de táxi. A cada instante todos da fila davam um passo à frente. De repente, num de seus anéis concêntricos, deparei com uma estupenda loira com várias malas, uma delas idêntica à que eu carregava. É ela, pensei!  Como eu me achava ainda longe dela, arrefeci a vontade de me mandar daquela fila, mas a chegada de um vetusto senhor junto à loira, com pinta de que havia percebido o engano quanto às malas, me fez mudar de decisão. Saí então daquela fila, fui até a banca de jornal, comprei um guia da cidade e ali permaneci até que aquele casal embarcasse em algum táxi. Só então retornei à fila e finalmente consegui apanhar o meu. No guia apontei para o motorista o nome do hotel, o mais caro daquela metrópole e para ele me mandei. Mas ao transpor o seu chiqueréssimo lobby, quem estava ali fazendo o check in? A loira e o coroa que eu havia visto no aeroporto! Aí eu pensei: desta vez vou ver de volta o meu saco de feijão. Cansado de tantos reveses tomei a decisão de permanecer ali, pronto para o que desse e viesse. Dirigi-me então ao atendente ao lado do casal, sem me preocupar com o raio da mala. Preenchi a ficha de ingresso e, pasmem, subi pelo elevador justo na companhia dos dois e de suas malas. Desci primeiro, entrei na suíte, tomei um belo banho e quando estava prestes a abrir a minha mala, a campainha estrilou. A porta abri e com quem deparei? Com a loira dizendo no bom português que havia pegado a minha mala e que queria ma devolver, desde que eu ficasse com ela também. E com a mala e com a loira fiquei, numa paixão que durou enquanto durou aquela dinheirama toda, ambos (dinheiro e loira) pertencentes ao coroa!

Chorando o leite derramado

A prodigalidade sempre foi a minha marca neste bizarro Planeta Terra. Quando bebê –dizia a minha mãe- eu mamava, cuspia fora o leite e, instantes depois, chorava desesperadamente sugando seus vazios peitos. Tudo que eu ganhava era imediatamente dado ao primeiro que mo pedia, o que me obrigava a estar sempre tentando obter coisas e vantagens, fosse pela via honesta, fosse por meio de astúcias e larapices. Para algum sossego meu, o fato de eu arrebatá-las e dá-las imediatamente me livrava de flagrantes e inquéritos, mercê da inexistência, em meu poder, do produto surrupiado. Mas como os resultados de meus trambiques sempre eram achados na posse de amigos e outros donatários, eles – e não eu – é que paravam nas celas das delegacias. Ingratos, diziam de mim cobras e lagartos, mas invariavelmente não perdiam os bens por mim dados, graças às suas má-caratices, aliadas à incompetência da polícia e à morosidade da justiça. E, assim que se empanturram e enricaram, não mais viram utilidade em me terem por perto e decidiram me meter naquele avião, duro de dinheiro como sempre vivi. Sacanas, sequer me preveniram de que em minha bagagem haviam colocado, junto à tora de fumo e as cumbucas de palha, o raio de um canivete que, na hora do embarque, quase me levou à prisão, com certeza graças a esta cara de árabe que Deus ou Alá me legou. É bem verdade que Eles, em suas infinitas bondades e santidades, me bafejaram com a sorte na troca das malas. Mas, apesar de Suas onipotências e grandezas, não cuidaram de extirpar de meu jeito de ser a minha mania atávica de dar tudo pros outros. E não fosse a minha crônica abertisse de mão eu teria maços e mais maços de dinheiro até o fim de minha vida. A sorte é que, esvaziada a de dinheiro, me restou a minha verdadeira mala e, em seu interior, o meu saco de feijão! Sorte é que naquele Continente em que me encontrava não se come feijão ou farinha!  E, inexistindo quem goste de comê-los, não tinha como os dar, o que constituiu a sorte de minha barriga, mas o concomitante azar para o exercício regular do meu vício de tudo dar! Prova disso foi o comportamento daquela loura. Bem que ela poderia ter continuado comigo, mesmo trocando as caras iguarias e bebidas finas da Alfama, do Moulin Rouge, das Ramblas ou da Trastevere por uma suculenta feijoada! Mas nem a culpo por isso, pois como dizem os cientistas é muito difícil mudar de hábitos culturais e mais difícil ainda mudar de hábitos alimentares. E como não consigo me livrar do hábito ou vício da prodigalidade; E como o exercício da prodigalidade supõe necessariamente que eu tenha algo a dar; E como a aquisição de coisas a serem dadas implica herdar, trabalhar ou delinqüir, ou eu voltava praquele Cu de Gato de onde fui expulso ou teria que ir à luta no Velho Continente. Monoglota que sou, poucas alternativas existiam a meu alcance, sem contar a crise econômica que se abateu sobre os locais e que exponenciou o número de pedintes, prostitutos e batedores de carteira.  Bem que fui confundido com um festejadíssimo jurisconsulto e convidado para palestrar numa vetustíssima faculdade à beira do Mondego. Mas assim que abri a boca, todos os assistentes rodaram as suas capas pretas e sonoramente me vaiaram. Rápido e apavorado, esgueirei-me por íngremes e tortuosos becos e, três dias de sofrida caminhada, cheguei a um desmantelado mosteiro. Roto e esfarrapado que me encontrava, fui admitido como frade menor, com a função de esvaziar urinóis em troca de sobras de tripas e vinhos avinagrados pelo mau hálito dos frades maiores. Tudo ia muito bem até o dia em que perceberam que eu não sabia declamar uma Ave Maria sequer, muito menos o Padre Nosso. Puseram-me no olho da rua, mas logo arranjei uma boquinha de guia turístico, estreando justo num misto de congresso científico, romaria e peregrinação, cujos participantes eram advogados públicos, falantes da mesma língua que falo. O meu serviço era ficar sentado na poltrona da frente de um ônibus, narrando num microfone a história daquelas plagas pelos trajetos. Embora chutando nomes de reis, rainhas e santos inexistentes, batalhas e milagres que nunca aconteceram, inventando nomes de povoados e aldeias, tudo ia muito bem, mesmo porque, feito eu, eles eram tão ou mais ignorantes daquilo que viam, sem contar que a maioria dormia enquanto eu falava feito homem da cobra. Os que não dormiam reviravam e admiravam as quinquilharias compradas ao longo do trajeto. Mas a minha empulhação durou pouco, pois simplesmente os fiz subir a pé por uma quilométrica ladeira, não levando em consideração que quase todos eram bem erados, brabos e ciosos de seus títulos, cargos, prerrogativas e o escambau, pois até ministro de Estado seguia naquela comitiva. Não sei se por caduquice ou falta de educação, eles vaiavam quando deviam aplaudir e aplaudiam quando deviam apupar. Então me mandei daquele ônibus, consegui uma carona e, em seguida, uma vaga de valete de hotel a troco de dormida e comida. Mas qual a minha danação! Escalado para acordar os hóspedes, fui à manhã seguinte à porta da suíte de um deles e o chamei. Na primeira chamada, ele não respondeu e então dei três toques na porta. Aí ele ralhou comigo: - não vou não! Aí eu disse “vai sim” e o ameacei de retirá-lo à força daquele quarto, embora três vezes mais pesado do que eu. Pois não é que o sujeito fazia parte da comitiva que me expulsou do ônibus! Gelei e fui ao gerente pedindo a troca de função. Mandaram-me então para a copa, onde eu julgava estar a salvo da ira daquele grupo, sobretudo de uma procuradora bem magra, de cabelos pretos e curtos, que a cada momento dava ordem unida e enquadrava os peregrinos, romeiros e congressistas. Certa hora, porém, me vi na obrigação de ir ao salão de jantar conduzindo uma bandeja de taças. Aí um baixinho meio careca, de posse de uma garrafa d água, me pediu um copo. Como taça não é copo, ignorei o seu pedido e ele ficou colérico e possesso. Outro, acho que o adjunto de ministro, pediu-me uma garrafa de vinho e três taças. Atendi-o prontamente enchendo as três taças, mas levando comigo o restante da garrafa de vinho. Ele, raivoso, ma pediu de volta, não admitindo que errara no pedido, e ainda por cima me entregou à gerência, pondo fim àquela brilhante carreira no trade hoteleiro lusitano. Corri daquele hotel, da cidade e do próprio país, mas não houve jeito. Parecia perseguição misturada à assombração, pois em cada local que eu ia trombava com um ou alguns integrantes daquela mistura de congresso, romaria e peregrinação. Na Torre Eiffel, vi um deles tentando escalá-la pelo lado de fora, certamente para não pagar ingresso. Outra, em Montmatre, subiu no cimo de um altar e ali tentou se sentar no lugar da santa, dizendo-se acima dela por se chamar Maria Santíssima. Um fez o sinal da cruz no túmulo de Napoleão, pensando que fosse o do Papa Inocêncio III. Outra tirou blusa e sutiã, e invadiu uma apresentação de can-can com os seus peitos murchos. Um bem velhinho deu de pescar em pleno Rio Sena, pensando que fosse o São Francisco. Em Versalhes, uma pirou, dizendo que era Maria Antonieta, enquanto todos diziam que ela havia ficado em Pernambuco. Um, em plena Opera, invadiu o palco e começou a cantar Assum Preto. Um belo casal, num chique restaurante na Champs Elisees, queria por que queria comer gueroba com pequi. No Louvre, um bem tirado a conhecedor de arte brigou com o guarda dizendo que a Monalisa ali exposta não passava de um retrato 3x4. Um, ao ouvir as genialidades de Leonardo da Vinci, disse, vermelho a custa de Viagra, que conseguia dar o dobro do que ele: quarenta sem tirar de dentro! Outra comprou todo o estoque da Galeria Lafayette, lotando centenas de trens do metrô e fazendo oscilar fortemente a cotação do Euro. Aí eu não tinha como ficar mais ali e me mandei para um país próximo, justo no dia da beatificação de um novo santo. Mas como faltava ao novel beato a realização de mais um milagre, resolvi dar o meu testemunho de fé, contando toda aquela saga por que passei e dizendo que foi a fé no beato que me impediu de ser levado para o hospício ou cemitério. E o Papa, reconhecendo tudo aquilo como milagre, na mesma hora assinou a portaria de canonização. Foi sorte, pois minutos depois comecei a ver a Praça de São Pedro invadida por aquele grupo que tanta dor de cabeça me deu. Por conta do milagre, agora virei pastorinho e quiçá um dia serei também canonizado e receberei visitas de romeiros e peregrinos do mundo inteiro, menos aqueles vindos de lá do Brasil! Enquanto, todavia, esse dia não vem, não posso ficar assim movido a uma ração de farinha e feijão.



Nem mel nem cabaça


Nada de dinheiro, fiquei no pelo e osso e com uma descomunal barba, a ponto de ter sido várias vezes confundido com Bin Laden, mesmo ele tendo sido morto dia seguinte à beatificação para cujo sucesso tanto concorri. E por conta da confusão, cristãos não me aceitavam por conta daquela parecença, nem muçulmanos me toleravam por conta da minha futura beatificação. De bom que tal sosiedade com Bin Laden me proporcionou foi o convite que recebi dos republicanos para que eu me passasse por ele. Tudo certo após eu aprender algumas palavras em árabe, mas na primeira simulação de entrevista eu deixei escapar o meu indefectível “uai”, mandando pra água abaixo a chance de amealhar um monte de dinheiro. Resolvi então mais uma vez mudar de país, justo no dia em que topei com um casal em lua de mel. Ele se dizia príncipe e ela plebéia, mas a avançada idade do carro em que eles passeavam me sinalizava que não. Mesmo os tomando por dois patifes tentando ludibriar um terceiro-mundista, compartilhei com eles, fruto da minha prodigalidade, meus últimos grãos de feijão. Quiseram que eu seguisse viagem com eles, mas menti que não possuía carteira de motorista. Prometeram uma boquinha em seu suposto castelo e até um cargo de primeiro-ministro, assim que a avó batesse a caçoleta e o pai renunciasse ao trono, por conta da feiúra da madrasta. Tomei tudo aquilo por uma farsa e não os segui. Mas dia seguinte, passando por uma banca de revista, vi ambos na primeira página, bem assim a notícia de que eles haviam partido em lua de mel para lugar incerto e não sabido. Num tablóide sensacionalista, uma polpuda oferta a quem desse pistas de seu paradeiro. Voltei ao lugar onde os havia encontrado, procurei, procurei até que vi ao longe, num ponto ermo da praia, um casal entre beijos e amassos. Eram eles, pensei! Mas como os fotografar se eu não tinha câmera ou um reles aparelho celular? Aproximei-me, certo de que eles seriam amáveis como foram no encontro anterior e certo também de que eles, com sua própria máquina, se deixariam ser por mim fotografados. Mas assim que me viram faltaram me matar, fazendo gestos de que o feijão que os dei de comer desarranjou seus intestinos. Putos, dali se mandaram e eu ali fiquei num bico de vender picolés. Por muitos dias evitei passar por aquele ponto da praia em que eu havia os encontrado, pois isso açularia em mim o ódio de não os ter fotografado ou até mesmo seqüestrado, levando ambos à presença dos editores de tablóides sensacionalistas. Mas uma semana depois, acabei por passar por lá, quando num bilhete deparei a palavra Seychelles. De um turista consegui emprestado um mapa e deles roubei um iate bem próximo ancorado e zarpei em direção àquela ilha. Inteiramente analfabeto nas artes de marear, finalmente bati com os costados numa que supus Seychelles. Assim que acabei de amarrar o iate, uma voz conhecida bradou o meu nome. E quando voltei para trás, era a voz da guia turística que havia sido minha colega no outro ônibus do congresso-peregrinação-romaria de tão triste memória. E atrás dela todos aqueles advogados públicos gritando e xingando. Mal desamarrei as cordas, ela trepou no convés do iate e nos mandamos dali. Aí eu me pus a pensar quão tortuosas são as rotas do destino. Quão incongruentes as coisas que me acontecem, pois a bordo de um iate daqueles eu deveria estar em uma companhia mais bela e mais gostosa do que a daquela insossa guia. Mas o mesmo destino que traça tortuosas rotas acaba às vezes por nos levar a infernos, mas também a paraísos. E foi o que aconteceu. Primeiro o inferno, ao sermos rendidos por uma malta de piratas, os quais apesar de afastados do sexo por muitos meses, sequer se interessaram pela colega guia turística. Mas ao paraíso, assim que eles nos entregaram ao seu chefe e ele gritou: é o Bin Laden! E eu, dizendo que sim, apresentei a guia como uma das minhas esposas. Deram-nos roupas limpas e a mim, sabedores de que eu tinha muitas outras, um monte de mulheres, cabendo à guia a primazia de conduzi-las naquele imenso harém, com direito a dizer que em tal lugar viveu o Sultão Aladin XXVII, que na caverna tal escondia Ali Babá, tal qual costumava fazer no microfone do ônibus. Àquela altura eu já era um homem fraco em todos os sentidos, inclusive no sentido libidinal. Mas a posse de tantas esposas tinha lá a sua vantagem, mesmo para um impotente como eu. A cada noite eu me deitava com uma, mas não conseguia dar conta do recado. Ela, no entanto, compreendia a minha falha, na suposição de que eu deitara antes com todas as outras trinta e nove esposas. No início eu imaginava o chefe dos piratas me entregando para os republicanos, como um troféu capaz de enterrar de vez a reeleição democrata. Mas o tempo foi dizendo que infundadas eram tais suposições, tal o carinho com que o flibusteiro me tratava. Certo dia, todavia, ele chegou a mim cheio de dedos e nove horas para finalmente e muito semgraçamente me propor uma troca: ele me daria sua arca de ouro em troca da guia turística que ele supunha ser a minha primeira esposa. Topei na hora e, dia seguinte, zarpei da ilha, sozinho, transportando aquele montão de ouro. Mas nem bem chegado ao mar alto, os mesmos piratas me atacaram, jogaram-me no mar e sumiram com navio e tesouros. A extrema magreza impediu que eu afundasse e a falta de carnes que algum tubarão me comesse. E foi boiando por muitos meses que finalmente bati os costados em uma praia. Nas noites inteiramente nuas de nuvens, eu me extasiava com meteoritos, meteoros, planetas, estrelas, antigas, novas e supernovas, anãs brancas, galáxias, além de objetos alados que eu não conhecia, o que me permitiu compreender a teoria de Einstein. Mas todo aquele conhecimento de nada me servia, pois uma dúvida apoquentava a minha cabeça. E boiando e não tendo nada a fazer senão pensar, eu não cansava de me perguntar o que de interessante havia naquela guia que eu não vi? Tudo se passava por minha cabeça. Seria ela a preferida de algum milionário? Herdeira presuntiva de algum trono de uma monarquia prestes a ser reinstaurada? Uma cientista que havia obtido a fórmula do elixir da longevidade? Mas a única hipótese tida por mim como plausível era o fato de que aquele bando de procuradores não mais conseguia viver sem ela e, por isso, ela poderia valer ao pirata-mór um suculento butim a título de resgate. Um ano havia se passado desde o dia em que eu me vi na confusão das malas. Aos poucos fui me fartando de cocos e caranguejos e me enturmando com os nativos que lá encontrei.  E, passado um ano, era hora de procurar saber onde seria realizado o décimo sétimo congresso. Nem precisei tentar saber, pois três grandes ônibus repentinamente chegaram àquela praia e no da frente, nas duas poltronas da frente, a procuradora magrela, de cabelos curtos e pretos, dando vozes de comando e a guia dizendo “aqui viveu o Rei Platão”, “logo ali o Jogador Sócrates”, “Acolá, Arquimedes, Anaximandro, Pitágoras e mais adiante”, apontando para mim, “aquele pelado, enfiado numa tina, descendente de um filósofo grego de nome Diógenes, o Cão Celestial!” Na hora saquei que na Grécia estava começando o XVII CONPPREV!


O cão ladra e a caravana passa

Como fiquei sofrendo e batendo pernas pelo mundo, entre a realização do XVI e a do XVII um ano depois, não pude participar da organização desse que é o mais importante e inusitado conclave que ocorre no Planeta, quiçá no Universo. Presumo, todavia, que eu teria sofrido infinitamente mais do que sofri se eu tivesse retornado a Cu de Gato e tivesse me metido na sua Comissão Organizadora. Rugas, pelancas, hematomas, braços em tipóia, falta de dentes eram visivelmente percebidos em toda a hierarquia da entidade de classe, organizadora do conclave, num claro sintoma de eles passaram o ano na mais completa guerra. Como não vi participantes das versões anteriores, conclui que alguns tombaram na luta. Concluí também que refregas, embates e bafafás produzem efeitos diferentes nas pessoas que deles participam. A maioria, obviamente, feito mutilados de guerra, traz em seus corpos e mentes os deletérios efeitos da vida bélica. Alguns, no entanto, não sofrem nem perecem, mas, ao contrário, parecem que se rejuvenescem quanto mais guerreiam. Mas, enfim, não obstante toda sorte de desentendimentos que precede o evento, ele sempre foi um sucesso e não será desta vez diferente. É óbvio que o mundo mudou enormemente entre o XVI e o XVII, pois Bin Laden morreu no término do anterior, um Papa foi precocemente canonizado, um terremoto sacudiu Roma e a Espanha e mais um montão de acontecimentos que não teriam ocorrido não fosse a realização de nosso Congresso. Mas apesar de toda essa força transformadora, acho que o tempo passou para mim e não faz sentido que eu saia de dentro desta tina, tome um banho, raspe a minha barba, me meta num terno e acompanhe, de ilha em ilha, a minha velha turma. Como sumi deles nos últimos doze meses, o lógico seria supor que eles me consideram morto. Mas não vejo na programação do evento nada que lembre a minha existência, eu que tive o privilégio de presidir vários congressos. Acho até que a maioria se sente aliviada, pois em meu tempo longas e enfadonhas eram as palestras, quando congresso é a oportunidade que o ser humano tem de fazer o que gosta. Quando mais jovens, todos gostavam de dançar, cantar, namorar... Mas a ciência demonstra que o ser humano, mesmo o mais incréu, o mais ateu, enfia de cabeça no misticismo assim que o peso da idade abate sobre ele. Nisso, portanto, reside a explicação de os congressos terem paulatinamente modificado os seus conteúdos programáticos, enfatizando romarias, procissões, peregrinações e atividades similares e/ou correlatas. Mas como esse tipo de modificação comportamental resulta de algo que não brota do livre arbítrio, posto que um reflexo incondicionado, tal modalidade de misticismo difere da fé professada pelos místicos de verdade. Como é forçada, não pela vontade de crer, mas como sintoma inafastável do peso da idade, eles praguejam, xingam e resmungam ao terem que visitar os lugares sagrados. De igual modo, eles detestam guias que ficam narrando coisas do passado, mesmo porque a maioria foi testemunha ocular dos fatos narrados e ninguém gosta dos que querem ensinar padre-nosso ao vigário. Não tiro a razão deles, até porque muitos foram pareceristas em eventos épicos narrados pelos guias e alguns participaram de muitas cerimônias reais do passado. É óbvio que alguns exageram, inclusive um distinto colega que jura que trabalhou no processo que antecipou a maioridade de um monarca de dupla numeração: Pedro I e também IV! Também me incomoda o porquê de eles ultimamente, na escolha do local de seus congressos, optarem por antiguidades e ruínas, se antes praias paradisíacas, estâncias termais, transatlânticos enfim eram sede dos conclaves! É óbvio que eu, depois de entrar pelado nesta tina e de estar em pleno solo grego, dei de filosofar e buscar um sentido lógico para tudo que vejo. Mas como o hábito (ou, no meu caso, a falta dele) não faz um monge, essas minhas conclusões carecem de bases científicas e temo até que possam ser entendidas como inveja ou ressentimento por não participar de mais um congresso, eu que sempre fui um conpreviano praticante e juramentado. E assim, enquanto eu ladrava, a caravana congressual passava!

Os Filósofos

Vi o último congressista tomar o ônibus, carregado de sacolas, e levar a tradicional vaia. Logo o último ônibus arrancou. Nem bem, de dentro da minha tina, tentei puxar um cochilo, ouvi choros e gritaria. Simplesmente um grupo chegou atrasado, quando o último ônibus já sumia na curva da estradinha de areia. Eu conhecia todos aqueles rostos e nutria por eles o maior carinho. Se ao invés da tina, eu morasse, por exemplo, num palácio, ou mesmo numa habitação mais decente, com certeza eu teria os convidado a entrar e ali eu certamente arrefeceria, com bebidas, comidas, boa música, a perda que sofreram. De igual modo, de nada adiantaria eu me apresentar a eles como velho colega, se nada em mim lembrava aquele cara metido em ternos bem cortados, camisas engomadas, lustrosos sapatos, bótons dourados, o verdadeiro rei da cocada preta, enfim!  Eles, me vendo nu e esquálido, com aquela horrível barba desgrenhada e saindo de uma velha tina jogada num canto de praia, jamais imaginariam que eu era aquela pessoa tão glamorosa que eles conheceram. Mais irreconhecível ainda eu seria, se além do meu aspecto físico, eles percebessem o quanto me mudei mentalmente, entrando no estéril e inútil campo da filosofia, próprio dos párias e desocupados, quando eu deveria dedicar o meu engenho e arte àquilo que eles dedicavam e que também dediquei antes de minha débâcle. Na tina, por conseguinte, quietinho permaneci, não com o sentimento de culpa de não lhes ter propiciado o dever da hospitalidade, justo numa hora tão adversa como aquela que eles passavam. A noite caía e eles se esforçavam em arranjarem uma carona, mas nada de aparecer uma reles carroça, quem dirá um táxi. Eu torcia para que eles conseguissem um transporte, não por ver em suas presenças um fator de incômodo para mim. Eles, por seu turno, sequer percebiam a minha presença ali e se percebiam dela não se introjetavam, sabido cientificamente que o ser humano tende a não enxergar os que se parecem fisionomicamente inferiores, como é o caso dos faxineiros, ascensoristas e afins. Mas eu também torcia para que eles fossem porque assim que caía a noite eu recebia as mais interessantes visitas e elas não gostavam de estranhos por perto. Eram amigos que consegui em solo grego, destes que jamais pedem coisas, nos invejam ou falam mal da gente. Amigos que, vendo o outro na mais absurda provação, jamais dão as costas ou temem serem importunados com pedidos de ajuda ou com acenos de reciprocidade em relação a um benefício anteriormente proporcionado. Amigos capazes de se sentirem na minha velha tina como que se estivessem no mais opulento dos castelos: OS FILÓSOFOS!    



Um bom conselho


De Cu de Gato somente a saudade de todas aquelas coisas que eu surrupiava e, com elas, exercitava o meu hobby de presentear as pessoas. Apesar de muitos atribuírem aspectos utilitaristas àquela minha prodigalidade crônica, confesso que o fazia pelo simples prazer de me agradar, agradando ao mesmo tempo as pessoas. Eu, sinceramente, não vindicava reciprocidade, tanto é verdade que muitos dos meus beneficiários se voltavam contra mim. Eu sabia de cor uma frase que dizia que “o dia do benefício é a véspera da ingratidão”, mas mesmo compreendendo em sua plenitude o que ela dizia, ainda assim eu continuava distribuindo mimos, presentes e agrados a todos que eu encontrava. Às vezes, por engano, eu surrupiava algo que eu próprio dei de presente. Nesse caso, diz a lei vigente no ordenamento de Cu de Gato, não se constituía roubo ou furto, sobretudo na hipótese de o donatário não ter exercitado o dever da gratidão em relação a mim. A lei de lá é clara: verificada a ingratidão, a doação é automaticamente desfeita e o bem anteriormente dado volta ao patrimônio do doador. Mas eles nunca voltavam e, por incrível que pareça, os beneficiários me processavam por furto ou roubo, o que invariavelmente não dava em nada, na medida em que eu, no instante que o surrupiava, passava o objeto para frente. Aqui, como nada possuo, nada posso ofertar. Como nunca me vali de outro artifício para roubar, senão a língua, o fato de não falar a daqui me impede de exercitar aquele hobby tão caro a mim, quando eu vivia em Cu de Gato. Assim, jogado na mais absoluta ociosidade e sem perspectivas de outra ocupação, não me resta outra coisa a fazer senão filosofices. E como a arte de filosofar tem por ingredientes fatos passados, os quais são submetidos a premissas, postulados e leis, é que eu acabo por remexer o meu velho baú de memórias. Só por isso as remexo, nunca por ressentimentos! Aliás, no íntimo estou gostando mais de mim como ora sou, do que como eu era anteriormente. Aquele meu jeito de ser antanho era complicado, dificultoso e oneroso, na medida em que eu perdia muito tempo me lavando, afeitando barba, cortando cabelo, aparando unhas, trocando de finas roupas e tantas outras obrigações que hoje não tenho. E como a vida que levo hoje se deve ao comportamento dos cugatenses em relação a mim, seria uma ingratidão eu alimentar ressentimentos em relação a eles. Se os alimentasse, eu estaria contrariando a própria legislação cugatense, incidindo em algo que poderia acarretar o desfazimento da boa vida que me legaram. Nesse caso, eu teria que sair dessa tina, tomar banho, raspar a minha longa barba, cortar as minhas unhas, me meter num terno, dar um belo laço na gravata, providenciar uma 007, celular, tablet, bóton, cartão de visita e voltar para o meu antigo batente. Exceto os mórmons que bem souberam escolher um Deus que lhes garantem a transladação de todos os seus bens quando partem para outra vida, não conheço um possuidor de coisas que não fique de cabelo em pé em saber que, ao morrer, não terá como levá-las junto. Deste mal eu, pelo menos, não sofro, mesmo porque nem minha é esta tina, nem meus são estes pensamentos, de modo que prefiro não alimentar ressentimentos e conservar junto de mim o nada que me legaram. Como nada é nada, ao contrário deles, feito os mórmons eu o levarei junto. Com efeito, Cristo, apesar de sua potência, não castigou Judas, pois sem a traição de Judas ele jamais teria chegado a Cristo! De igual modo, sem a expulsão a mim infligida pelos cugatenses, eu jamais chegaria à confortável situação de não ter coisas me incomodando, pedindo que eu as conserve, que eu as conserte, que delas eu obtenha lucros e que para elas eu busque uma destinação que não seja a sua dissipação pelos herdeiros, sobretudo os genros ou o governo! Mas voltando ao misto de congresso-romaria-peregrinação, sem querer me meter em sua concepção, penso ter chegado a hora de uma séria discussão sobre isso: um painel ou um workshoping com a presença de economistas, estrategistas, especialistas em finanças e cooperativismo, advinhos e malabaristas com vistas a dotar a classe de conhecimentos de como gerir bens nos estertores da morte. Mas que não me chamem para uma palestra, pois ela será curta e eu apedrejado, pois o tema que eu escolheria seria: Torrem tudo, enquanto ainda há tempo!

A Recaída

Assim que acordei e pus a minha cara para fora da tina, deparei com mais aquela horda de turistas que aqui chega diariamente. Mas isso seria um acontecimento banal e corriqueiro não fosse a visão de um deles puxando uma mala idêntica àquelas duas que passaram por minhas mãos em época não muito recente. Como ambas foram por mim esvaziadas, eu, a principio, nada deveria regozijar (pelo monte de dinheiro) ou temer (pelos inconvenientes de muito dinheiro ter)! Embora, por segundos, essas sensações antípodas acabaram por passar por mim, logo fui restituído à minha habitual calma e continuei na minha azáfama diária de só pensar. Mas como a noite anterior foi fraca no quesito das visitas que recebo em minha tina, pobres eram os meus pensamentos naquele dia, o que abriu brecha para que, volta e meia, eu pensasse naquele sujeito e em sua mala. Exceto, porém, aquela visão no início da manhã, o dia transcorreu sem que eu os visse, o que me levou a uma série de conjecturas, desde as óbvias como “ele deu entrada num hotel” às mais extremas do tipo “ele enterrou a mala na areia”! Como os vi, mala e sujeito, a uma distância considerável, e como não disponho de binóculos, por exemplo, não pude me acercar, sobretudo em relação ao macróbio, se ele era aquele coroa  do qual subtraí a loura e a mala e se esta última era realmente uma daquelas, sobretudo a mais rica. Como a minha visão mais se deteve nela do que nele, elementos de convicção se reforçaram em mim de que com muita certeza ela era uma ou outra, daquelas que se alternaram em minhas mãos em época não muito distante. E aí eu me pus a imaginar sobre o seu conteúdo. Observei que o seu carregador não transparecia dificuldades em carregá-la. Por outro lado, notei que os seus sapatos afundavam na areia numa proporção bem superior à dos demais turistas, o que poderia evidenciar o seu sobrepeso. Mas ele, carregador, parecia mais gordo do que os demais! Gordo, ou suas roupas eram folgadas e disfarçavam a sua magreza? Mas se fosse magro, incongruente seria supor a sua tranquila deambulação com aquele peso todo que eu supunha estar em seu interior. Aí eu me pilhei, naquelas divagações, privilegiando a suposta riqueza contida em seu interior, não a possibilidade de ela estar vazia ou quando muito recheada de molambos, feijão e farinha, como estava a primeira que carreguei em data não muito recente. Aliás, me pilhei divagando sobre a hipótese de ela ser uma daquelas, quando seria razoável, em se tratando de mim, imaginá-la apenas como mais uma dos milhares que saíram, idênticas, da linha de montagem de seu fabricante. Se a noite anterior tivesse sido pródiga em filósofos visitadores de minha tina, com certeza eu perfilharia esta última hipótese ou talvez nem tivesse açulado a minha curiosidade em relação à mala que vi na mão do turista. Mas, por mais que me esforçasse em sentido contrário, lucubrações sobre o raio da mala fervilhavam em minha cabeça. Cheguei a agachar-me dentro da tina, cabeceando o seu fundo, quando um pensamento extremo me transportou sobre mares e eu cheguei a Cu de Gato, com ela a tiracolo, onde distribuí todo o dinheiro. Em segundos, mudei de idéia e comprei tudo que havia de melhor, para inveja dos cugatenses. Mais algumas cabeçadas no fundo da velha tina, imaginei-a fornida somente de feijões e com eles sonhei saciar a fome do mundo. Finalmente, com a testa tomada por hematomas, tomei-a por literalmente vazia e sosseguei. A noite caiu e, como os turistas resolveram ficar, não recebi as minhas visitas. Nervoso, me pus a andar pela praia, chutando latas e restos de comida, quando o meu pé direito esbarrou em algo que logo imaginei fosse uma mala ali enterrada. Apertei um pouco mais e senti a aspereza de uma lona. Tateei-a e o meu pé, ao sentir o metal de seu zíper, mandou para o meu cérebro a conclusão que era de fato uma mala. Fiz vênia de desenterrá-la, mas fui dissuadido pela presença de todos aqueles vultos andando pela praia. Pensei passar a noite perto dela, mas temi que eu pudesse perder a minha tina, abandonada cerca de um quilômetro. Ponderei que, com o conteúdo da mala, eu poderia comprar não outra tina, mas todas as tinas do mundo, mas logo me redargüi sobre a hipótese de ela estar vazia ou sem dinheiro. E aí, pelo sim pelo não, não quis trocar o certo pelo duvidoso e saí imediatamente dali, indo em direção à velha tina. Mas ao passar por um trecho ermo da praia, topei com um casal ali a transar. Embora fraca a luz da lua, um corpo escultural ofuscou os meus olhos e a sua silhueta coincidiu exatamente com a da loura que ainda estava gravada em minha retina.  Aproximei-me um pouco mais e tudo nela, do montinho negro de Vênus contrastando com aquela brancura de pele, ao dourado de seus cabelos refletindo os raios da lua, me acerquei de que ambas, mala e loura, estavam novamente próximas a mim, quem sabe à procura de mim ou propensas a que eu as encontrasse. Tomei aquilo como algo do destino e filosofei sobre se deve ou não se curvar ante os seus desígnios e, em se curvando, até que ponto isso significa contrariar os nossos princípios. Tomei o partido dos princípios e reprincipiei minha caminhada rumo à tina, quando vi um turista se afogando, enquanto os de sua turma sequer esboçavam qualquer gesto em salvá-lo. Notei que pelos chapéus e língua eram chineses e me lembrei que vigora em algum lugar da China uma lei que proíbe alguém salvar os que estão se afogando, pois isso interfere no regular desiderato de seus destinos. Mudei então de idéia, abracei o partido do destino como força superior à dos princípios e voltei ao lugar em que momentos antes topei com aquele animado casal. Mas em lá chegando não os vi mais. Dirigi-me, então ao lugar em que eu supunha estar enterrada a mala, mas como não o assinalei, acabei por varar a madrugada revolvendo montes e mais montes de areia e nada encontrando.

Encontro

Dia quase raiando, ao longe vi a minha tina. Exausto de tanto cavar areia e nada encontrar, não via a hora de lá chegar e descansar o meu pobre esqueleto. Mas lenta era a minha jornada, fruto do cansaço e do fofo da areia sob os meus pés. Enquanto caminhava, eu me penitenciava pela quase recaída, mas ao mesmo tempo me sentia feliz ao ver a minha tina cada vez mais perto. Via-me, ao final do dia, em animado papo com as minhas visitas, bebendo na boa fonte as mais acertadas conclusões, sobretudo acerca da primazia, ou não, dos princípios sobre o destino e me prometendo, fosse qual fosse a conclusão, me aferrar inarredavelmente a ela, não obstante quaisquer apelos que cruzassem o meu caminho, sobretudo os de natureza libidinosa, mercê de minha impotência. Aos poucos, o vento frio da manhã, vindo do mar em direção ao continente, foi arejando a minha cabeça, espanando toda aquela poeira de maus pensamentos e inteiramente limpo cheguei perto da minha querida tina. Mas quando levantei a perna direita, tentando alçá-la e entrar em seu continente, um susto: - Suma daqui... desapareça! Ela simplesmente havia sido invadida e de seu interior jorravam frases inamistosas, pontuada por gestos beligerantes, socos dados para o alto, sem que fosse possível divisar a fisionomia de quem os desferiam. Ponderei que a tina era minha, mas o invasor pediu que eu provasse, exigindo-me até a apresentação de coisas como escritura, pagamentos de taxas e correspondência a mim destinada naquele endereço. Pensei partir para as vias de fato, mas quando tentei por a cara em seu interior, um punhado de areia saído lá de dentro turvou a minha visão. Por minutos fiquei com os meus olhos ardendo feito brasa e consegui lavá-los com a água do mar, enquanto uma voz cada vez mais distante gritava: fique com a mala e com a loira! Aí, ainda meio cego, supus que o invasor havia fugido e me deixado, além da mala e da loira que eu não mais desejava possuir, a minha inseparável tina. Mas qual nada! Assim que a visão recobrei concluí que o sujeito era realmente o coroa e que ele havia fugido com a minha velha tina. Corri o quanto pude, mas ambos, velho e tina, sumiram naquela imensidão. E eu que até pensava imune a perdas; e eu que me imaginava inteiramente desapegado de coisas materiais, ali a lamentar o roubo de uma tina, que nem minha verdadeiramente era, sem contar o fato de que eu não sou descendente do louco Cão Celestial, não sendo seu herdeiro, portanto! Mas eu estava ali nu, na mais acentuada acepção do termo. E, naquela circunstância, encontrar aquela mala não mais era uma questão de destino ou de principio, mas a escancarada acepção do estado de necessidade, com a sua força de afastar de meu gesto pruridos de culpa, por exemplo. Resoluto, parti rumo à maldita mala, torcendo que nela, ao invés de dinheiro, eu encontrasse pelo menos roupa. Cego de raiva e dos efeitos da areia irritando os meus olhos saí cavando a esmo até que esbarrei num corpo deitado na praia. Era a loira e ele se desmanchava a me ver!  Mas eu nada queria com ela e dela, feito um brutamontes, me desvencilhei, seguindo no meu afã de a mala encontrar. Fui até o fim da praia, esquadrinhando-a palmo a palmo e nada de encontrar o raio de mala. Cansado e sem o conforto da tina, ali mesmo deitei e me pus a sonhar, sonhar sobretudo encontrando a mala que eu, sem sombra de dúvida, vi ali enterrada. Mas aos poucos meu sonho foi se embrenhando por caminhos de meu inconsciente há muito não navegados. E, de repente, ele chegou à morada dos instintos sexuais e aquela loira, horas antes por mim espancada e enxotava, se enleava em mim e me acariciava, enquanto uma inusitada ereção pendia de meu corpo feito as palmeiras em volta. E aí eu me dei conta de que nem tudo estava perdido, ou melhor, o que eu julgava perdido – a minha velha ereção – estava ali de volta, rija e pulsante como dantes, enquanto a loira certamente perambulava por perto. Desisti, então, de procurar a malsinada mala, dando-me por satisfeito em achar aquela apetitosa loira, para transformar em realidade o sonho que eu acabara de sonhar. Voltei, então, ao lugar onde ela se deitara e ao longe, espetado num monte de areia revolvida, um bilhete: - A mala estava enterrada aqui! De fato, a silhueta dela estava estampada no fundo do buraco, sendo possível ler a sua marca invertida e em baixo relevo. Mas como as esvaziei, torrando todo o dinheiro de uma e, em seguida, comendo todos os feijões da outra, por que o coroa e a loira trouxeram uma ou outra? Se a enterraram, isso significa que nada havia em seu conteúdo ou se havia era insignificante? Ou a enterraram justamente por que nela jazia um tesouro? Essas e mil indagações fervilhavam em minha cabeça, ponteadas pela tristeza do sumiço da loira e principalmente de minha tina. Despossuído de tudo, inclusive da esperança de encontrá-las, mala, loira ou a minha velha tina, pela primeira vez brotou o desejo de morrer ou de voltar para Cu de Gato. Mas como?

A Volta

Aos poucos Cu de Gato não me saía da lembrança. Desde o esbulho possessório da tina de que fui vítima, os filósofos não mais me visitavam e, longe de seus ensinamentos, os meus valores, tidos por mim como inabaláveis como os penhascos no centro da ilha, pendiam por se corromperem. Nu que me achava e sem o abrigo da tina, pela primeira vez na vida me apropriei de algo, não para exercitar a antiga prodigalidade, mas para o meu próprio uso: um velho calção de banho, enquanto o seu proprietário se banhava distraidamente num ponto distante da linha da praia. Como roubar e coçar é só começar, ao cair da tarde daquele mesmo dia eu já estava metido num bom terno, sentado à mesa de um fino restaurante, donde saí ao volante de um possante esportivo, ali estacionado com as chaves na ignição. Ao sair daquele repasto, repondo em minha carteira o troco recebido, dei um encontrão num mendigo que a mão me estendia à porta e, naquele instante, me dei por curado do vício de tudo dar. Dancei a noite toda e amanheci naquela suíte presidencial, ao lado de três estupendas garotas, uma mais gostosa do que a outra. Como há muito tempo não fazia, assim que abri os olhos rendi todas as graças a Deus, rezei e me persignei pelo fato de Ele ter me livrado da prodigalidade, do pavor de roubar por roubar, da impotência, daquela ingrata loira, do pobre conteúdo da mala de dinheiro e, sobretudo, daquela horrorosa tina. Àquela altura, para que eu voltasse de cabeça erguida para Cu de Gato, só me faltava a posse de um jatinho ou de um estupendo iate. Com certeza, graças à súbita mudança de comportamento, que Deus ou o destino me bafejou, temor de não me adaptar ali eu não tinha, mesmo porque me tornei um cugatense da gema. Mas preferi adiar a minha volta, tal o meu êxito empresarial no Velho Continente. De mais a mais, andando por aqueles requintados endereços era como em Cu de Gato eu estivesse, tal o número de turistas endinheirados, vindos de lá. A única coisa que me fazia passar por local, não por cugatense como eles, era o temor de eles me pedirem as minhas coisas e eu recair no vício de tudo dar. Pelo contrário, eu àquela altura tirava deles tudo o que eu podia tirar e sem que eles percebessem. Como obtive a concessão para explorar os principais museus, mosteiros, castelos e monumentos, graças ao jeitinho cugatense, cada vez que eles ali entravam mais engordavam o meu estupendo patrimônio, pois se limitavam a entrarem por uma porta e saírem por outra sem ao menos admirar uma mera obra de arte! Pagavam fortunas pela comida de meus restaurantes, mas raramente mexiam nos pratos, atrasados que são como consumidores de farinha e feijão. Finalmente eu era um homem realizado e feliz. Embora voando em meus próprios jatos e navegando nos meus iates, eu pouco cruzava com viajantes. Hospedando-me em minhas próprias mansões espalhadas por ilhas e continentes, eu raramente os via, pois, apesar de minha felicidade, ainda insistia em jazer em mim o trauma de ver malas. Sobretudo o medo de, ao ver uma parecida com aquelas de triste memória, rebrotar em mim toda aquela sorte de infortúnios e atropelos. É óbvio que tal possibilidade se arrefeceu quando comprei a fábrica e determinei o fim da confecção daquele malsinado modelo, substituindo por um bem diferente, cujos donos poderiam trocá-lo pelo novo e ainda levarem cintos e chapéus como brindes. De qualquer sorte, aquele velho modelo, se é que ainda resta algum voando ou navegando por aí, ainda me causa traumas e arrepios, mas me conforta a força do Poderoso que não falhou em empreitadas tão mais difíceis e não falhará na ingente tarefa de colocar bem longe de mim alguma mala remanescente.


Suposições

Acordei sem acreditar no que a minha governanta me dizia. Enquanto despia o meu pijama de seda, ela tentava me convencer de que todos aqueles jornais traziam uma manchete a meu respeito. O barulho da água da ducha abafava toda aquela lengalenga, mas ela, do outro lado do vidro do box, acenava-me com os exemplares dos jornais e eu permanecia impávido, como que aquilo não fosse comigo. E assim me permaneci ao barbear, ao escolher e vestir as minhas roupas, ao afagar a minha matilha ao pé da porta do quarto e, finalmente, ao tomar o café-da-manhã e rumar para a sede de meu conglomerado, a bordo de um dos meus helicópteros. Nele, pelos fones de comunicação, o piloto insistia em me dar aquelas mesmas notícias, mas o barulho do rotor me impedia de ouvir. Já no heliporto, o meu diretor jurídico, nem bem apeei, quase que foi degolado pela hélice traseira, ao dizer que eu não deveria me submeter àquilo. Mas, por vontade própria, eu, mesmo não sabendo do que se tratava, disse a ele que não iria me submeter. Como aprendi que não se deve dar ouvidos a subordinados, ali mesmo dispensei o piloto e dali decolei rumo a uma de muitas das minhas ilhas, justo a deserta, na certeza de que ninguém me daria qualquer espécie de notícia. Pousei e, depois de muito tempo, pude mergulhar na solidão. Fiz do helicóptero a minha pousada e a pequenez de sua cabine não significava desconforto para quem por muito tempo viveu dentro de uma tina. A solidão tem efetivamente as suas vantagens, mas desperta a mania de pensar, conjecturar e imaginar. E eu, mesmo deliberadamente não tendo querido ouvir aquelas notícias, me pus a tecer considerações sobre o seu teor. Por muitos dias não me saía da cabeça que elas tinham a ver com a loira. Como elas pareciam dizer respeito a se submeter a algo, pensei num exame de DNA, mas eu somente transei com ela em sonho e as transas reais se deram ao tempo em que eu era impotente e infértil. Pensei que “se submeter” tinha algo a ver com a forma com que amealhei fortunas, mas tudo fiz mediante parecer de advogados, sem contar a minha experiência como um. Tais suposições eram alternadas pela de que acharam a velha tina e eu teria que me submeter à comprovação de que fui o seu dono. E, como não poderia deixar de ser, a mala também não me saía da cabeça e eles queriam que eu comprovasse que de fato ela era minha. E assim os dias foram passando e o meu estoque de conjecturas aumentando. Em um canto da praia resolvi então traçar na areia várias colunas, cada uma encimada por uma palavra capaz de designar os tipos de suposição que passaram por minha cabeça. Dividi-as em subgrupos do tipo “Cu de Gato”, subdividido em família, profissão, amigos, trambiques, prodigalidade e outras, e do tipo “Fuga”, “Congresso”, “Mala”, “Guia Turística”, “Coroa”, “Loira”, “Tina”, “Fase Empresarial” e “Outras a classificar”. Vários gravetos gastei rabiscando minhas suposições naquela extensa fila de colunas, cujos escritos eu vigiava constantemente, nomeadamente contra gaivotas e outras aves marinhas que insistiam em pisoteá-los. Certo é que aquela faixa de areia se transformou numa gigantesca folha de papel. Mas quando eu já me dava por satisfeito e partia para a tabulação de todos aqueles dados imprescindíveis à minha conclusão e tomada de decisão, um pavoroso tsunami lambeu toda a ilha, levando-me, eu e o helicóptero, de roldão. Quando dei por mim, eu estava em mar alto, agarrado num tronco de palmeira e sem saber que rumo tomar, pois somente água eu via para qualquer lado que eu virasse. Como não era a minha primeira vez como náufrago, me arrepiei ao pensar que a sorte, feito os raios, não costuma cair no mesmo lugar e aí me pus a raciocinar feito um possuidor de coisas nos estertores da morte. E aquela ilha, apesar de varrida pelo tsunami? E todas as outras? E as mansões? E os carrões, iates, aviões e helicópteros? E os conglomerados, com suas indústrias, financeiras e imobiliárias? E a minha recheada carteira de aplicações? E eu ali, em pleno alto mar, agarrado num tronco de palmeira! Enquanto isso o tronco, levando-me junto, parecia rumar em direção ao nada. As forças que me restavam já não eram suficientes para a mais tênue remada, quando, ao longe, divisei os contornos de uma pequena ilha. Animei-me, mas à proporção que ela se aproximava, o refluxo da onda nos impelia em sentido contrário. Entreguei, então, os pontos, fechei os olhos e me preparei para a viagem final...     

Náufrago de novo

Abri os olhos e que surpresa: uma suntuosa suíte! Numa grande mesa, todos os tipos de comidas e bebidas, mas ninguém por perto. Tentei me levantar, mas algo preso na junção de meu braço com antebraço me impediu de levantar. Olhei e notei que eu estava atrelado a um descomunal garrafão de soro, cujo conteúdo já se achava próximo a se esgotar. Removi então o torniquete e retirei a agulha espetada em meu braço. Num arranco, cheguei à janela e só vi uma luxuriante vegetação em torno da mansarda. Abri a porta da grande suíte e comecei a gritar por alguém, mas ninguém respondia, muito menos vinha ao meu encontro. Passei por todas as salas, todos os corredores e todos os quartos, todos suntuosos e bem arrumados, mas nada de encontrar reles vivalma. Cheguei a um escritório e meu coração disparou ao ver ali telefones e terminais de computadores. Os telefones mudos estavam, mas para sorte minha um dos terminais respondeu prontamente ao aperto de suas teclas. Finalmente eu poderia mandar uma mensagem para a minha empresa e logo eles me retirariam daquele tugúrio de fim de mundo. Mas, de sua tela, o pedido para que eu digitasse uma senha que eu sequer possuía. Levantei-me e me pus a andar em torno da ilha, tentando achar algum iate ou uma simples canoa capaz de me transportar para além daquela ilha. Nada achei que se prestasse à arte de marear, senão o conhecido tronco de palmeira que me trouxe. Por um instante cheguei a imaginar que eu, morto que me supus, não mais estava no Planeta Terra e que, graças ao Deus Mórmon, eu havia sido translado com a minha ilha diretamente para o Céu. Mas, ponderei comigo mesmo que aquilo era uma estultice, pois a minha vida pregressa jamais me conduziria a alguma plaga celestial, não obstante valores morais cultivados pelos mórmons, inteiramente incongruentes com o código deontológico da maioria das religiões. Voltei ao escritório e me pus a vasculhar mesas e gavetas à cata de alguma pista sobre aquele local, sobre quem me socorreu e, sobretudo, à procura da maldita senha que o computador me pedia para digitar. Baldada toda a procura, me pus a combinar letras do alfabeto, ora números, ora ambos, no afã de acertar a senha solicitada, mas nada! Exceto de viventes e de meios de comunicação externa, a ilha estava munida de tudo que um ser humano necessita. Curiosamente, todos os livros das estantes, todos os filmes, bebidas, charutos e afins eram coisas do meu gosto, num sintoma de que quem me socorreu e me deixou ali era pessoa conhecedora do meu jeito de ser. Menos mal, pois aquela era a primeira vez que eu estava segregado, mas cercado de todo o conforto. Até substâncias tranqüilizantes, legais e proibidas, capazes de arrefecer o meu estresse eu achava por todos os cantos. Numa pequena torre da mansarda, binóculos, lunetas e telescópios para que eu me distraísse observando os astros. Obviamente, não morria em mim a esperança de que alguém viria ao meu encontro, pois toda aquela receptividade denotava que o meu ou a minha hostess ou anfitriã era pessoa que nutria por mim todo o cuidado e apreço. No terceiro dia da espera, um ronco de avião ou helicóptero e a certeza de que vinha ao meu encontro. Mas nada, ele passou ao longe, enquanto eu tentava encontrar ali algo capaz de gerar faísca ou fogo, de forma a me permitir mandar sinais de fumaça. Só então me dei conta da falta deste item. Mas me lembrei da eletricidade, inclusive no terminal de computador e me aliviei ao constatar a possibilidade de transformá-la em fogo assim que me aprouvesse. Afora a solidão, a que eu já me acostumara desde sempre, aos poucos fui me adaptando e até mesmo gostando de minha estada naquela ilha, longe dos aborrecimentos da vida empresarial. Embora imprestável para a comunicação, o computador me permitiu que eu nele registrasse estas memórias, matando assim o meu tempo. Além de escrever, a luxuriante vegetação da ilha permitiu extravasar em mim um hobby há muito perdido, o da jardinagem. Além disso, depois de gororobas insossas, eu já podia me considerar um bom chef, tantos os livros e dvd´s com as mais variadas receitas, cujos ingredientes eram facilmente encontráveis na bem fornida despensa da mansarda, dotada das mais requintadas iguarias, inclusive farinha e feijão. Do mesmo modo, tamanha a quantidade de bons filmes que assisti, eu poderia simplesmente dispensar os críticos de cinema dos meus jornais e revistas. Bonecas infláveis e filmes x-rated aliviavam os meus baixos instintos, de forma que cheguei ao ponto de desejar jamais ser retirado dali. Certa noite, todavia, ao vasculhar os céus em busca de algum novo astro, quiçá de um ET, abaixei o tubo da luneta bem próximo à linha do horizonte e deparei, ao longe, com um grande navio, cujas janelinhas evidenciavam que não era um cargueiro, mas possivelmente aqueles cruzeiros ou transatlânticos. Num primeiro momento, por conta da bruma e da distância, eu não tinha como divisar sua bandeira ou algo que estivesse escrito em seu casco. Mas a profusão de luzes acesas em seu deck superior e fogos de artifício soltados a cada instante evidenciavam festa a bordo. Temi que ele passasse ao largo, mas aos poucos ele foi crescendo nas lentes de minha luneta. Foi aí então que me lembrei da necessidade de mandar sinais de fumaça e apressei em preparar um curto-circuito capaz de incandescer uma grande tocha que havia preparado fazia muito tempo. Removi, então, o tampo de um dos interruptores, desparafusei o par de fios, mas quando os coloquei em contato uma pequena explosão cortou toda a energia da ilha. Voltei correndo à torre de observação, ajustei a luneta rumo ao navio e ele, àquela altura bem mais perto, se mostrou para mim com todo o seu garbo e grandeza. Deslizei o foco de minha luneta sobre o seu casco, vi o seu nome e bandeira e, tremulando entre as suas duas enormes chaminés, uma grande faixa: SALVE O XVIII CONGRESSO NACIONAL DOS PROC...  Não acreditei e, no ato, lívido e suando frio, desviei repentinamente o foco de minha luneta!

Gran Finale

Com tantos lugares no mundo para se navegar, me perguntei: que raio de coisa fez aquele navio parar ali. E com tanta gente para me achar, por que razão eu ser encontrado justamente por aqueles folgados congressistas? Eu sequer havia dado conta de que dois anos se passaram desde o dia em que, num congresso, fui vítima da troca de malas. De igual modo me custava crer que toda aquela gente ainda estava viva, sobretudo uma entidade de classe que eles próprios vaticinavam constantemente a sua morte! Mas eram eles mesmos, daquela feita realizando o seu anual evento em mais um transatlântico. O alarido era tamanho e tamanha a algazarra a bordo que o navio se jogava mais do que o habitual, levando-me a temer até por mais um tsunami a varrer aquela ilhota em que eu estava tão confortavelmente instalado.  Mas lembrando-me de que velhos eram os meus antigos colegas, supus que toda aquela vitalidade a bordo ou era por conta do Viagra ou a entidade finalmente havia conseguido concretizar o sonho de filiar os novos procuradores. Vendo, porém, aquela balbúrdia toda, dei graças a Deus por não ter conseguido fazer fogo e fumaça, de modo a chamar a atenção de seus tripulantes e passageiros. Em dúvida quanto à sua verdadeira carga humana, centrei novamente o foco da luneta em sua direção e, mais perto ainda que ele estava pude ver cada rosto e identificar, portador por portador, todos eles. Como rejuvenesceram, pois os seus rostos estavam mais esticados do que égua puxando carroça! E eu que estava enganado quanto ao êxito na filiação dos novos, confesso que fiquei feliz com a decisão da diretoria em rejuvenescer os velhos, ao invés de filiar gente nova! De repente o navio se fundeou na baía em frente e, pelo adiantado da hora, toda aquela balbúrdia cessou. Reinantes o silêncio e a escuridão acarretada pelo curto-circuito que provoquei, fui dormir, mas não consegui me aferrar no sono, temendo um novo “Dia D”. Sonhos e pesadelos pontearam os momentos de interrupção de minha vigília. Ora eu me via escondendo deles, ora fugindo dali a nado, ora envergando o melhor dos ternos à minha disposição e participando daquele décimo oitavo evento. Eu me via empunhando a bandeira da nossa equiparação aos juízes, bem assim a percepção das vantagens individuais há tempos subtraídas. Eu me via descobrindo a fórmula do Elixir da Vida Eterna e com ela garantindo a não redução da arrecadação de nossa contribuição associativa. Em nossas carteiras o antigo trânsito livre e o porte de armas e todos os nossos precatórios imediatamente pagos. Mas logo o pavor invadia sonhos tão bem acalentados e eu sonhava com a velha tina que tão bem me albergou. Aí eu amaldiçoava o fato de ter batido os costados naquela paradisíaca ilha, bem assim amaldiçoava a pessoa que ali me agasalhou, privando-me do direito de morrer em paz. E a amaldiçoava mais ainda por não ter me provido de meios de sair dali, antes da chegada daquela cambada, ou porque não quis me levar. Eu sonhava vê-los distantes assim que o sol aparecesse naquela manhã. Sonhava até que, caso o seu comandante não o fizesse, um vendaval levasse aquele grande navio para o mais distante possível. Só não sonhei com aquilo que verdadeiramente ocorreu assim que o novo dia começou. De repente, não se sabe por que cargas d´água, o grande navio se pôs a afundar e eu, observando tudo aquilo à distância, entrei em pânico, não obstante minhas recaídas em renegar a minha antiga turma. Há tempos eu não falava com Deus, mas a Ele imediatamente recorri, pedindo que fizesse o impossível para salvar aquela turma.  E Ele ouviu as minhas preces, pois os escaleres se encheram dos passageiros e zarparam antes de o navio inteiramente se submergir. Só que eu me esqueci de pedir-Lhe para que outra direção aqueles escaleres tomassem e Ele, não alertado por mim, os fez aportar justo na pequena ilha onde eu me encontrava. Ao ver aquela horda atônita e desatinada descer daqueles batelões, a minha primeira reação foi afundar a cara no travesseiro e fingir-me de morto até que eles partissem. Mas de nada adiantou, pois refeitos daquele susto inicial, lá vinham em direção à mansarda, tendo à frente aquela indefectível guia turística, berrando no megafone da equipagem de salvamento. Não mais a havia visto desde o dia em que o pirata-mor ficou com ela a troco de um imenso tesouro que me legou, mas horas depois me foi surrupiado pelos seus próprios asseclas. E eu que até então alimentava ganas de fugir, mudei de idéia ao vê-la, sobretudo visando esclarecer melhor o que levou aquele pirata a se interessar por um bucho feito ela. Vesti então o meu melhor terno, penteei-me elegantemente e fui para a varanda da mansarda os recepcionar. Assim que se aproximaram, uma gritou: Carmotinha, quequivocê tà fazendo aí? E todos exprimiam estupefações e exclamações semelhantes. E aí, a mais bela de todas elas, a mais parceira e colega, a que namorei e com quem me casei; enfim, a que não deixou a peteca da entidade cair, tão logo eu a abandonei, exclamou: - Toda essa surpresa só poderia ser feita por você meu amor! E eu que nem dono da ilha era; e eu que nem bem sabia dizer como fui parar ali; e eu que não providenciei a aventura de afundar um navio e colocar em terra, a salvo, todos os seus passageiros, de orgulho me enchi. Por três dias farreamos tanto que, ao término do evento quase que me esqueci de perguntar à guia o que ela havia armado com aquele velho pirata-mor. E ela me afirmou que tinha sido por conta do tesouro. Mas eu redargüi que o tal tesouro havia sido em seguida arrebatado de mim. E ela, retrucando que não, arrematou: - foi por conta desse tesouro de mulher que eu trouxe para ti que me entreguei a ele, comprei esta ilha e aqui te alberguei até trazer a tua verdadeira loura para os braços de ti!

Pos Gran Finale

Não sei por que essa mania da humanidade de registrar seus feitos. É claro que ela vem de longe, desde os tempos em que antepassados nossos rabiscavam as paredes das cavernas. Eu nunca havia preocupado em fazer isso, mas bastou a falta do que fazer e a disponibilidade de um computador e eu acabei por incidir no péssimo hábito de escrever memórias. Melhor teria sido que eu não as salvasse ou que o computador tivesse ido a pique quando do curto-circuito por mim provocado. Mas certo é que cometi a imprudência de escrevê-las e, sobretudo, deixá-las ali naquela cachola virtual, sem qualquer senha criptográfica e, por conseguinte, presa fácil da bisbilhotice alheia. E não deu outra, pois muitos colegas que eu supunha partícipes da homérica farra de três dias estavam na verdade trancafiados no escritório da mansarda, fuçando o computador e lendo tudo isto que nele escrevi. Como as escrevi para mim mesmo, ou para ninguém, inclusive eu, não pus travas em meus pensamentos, nem me acerquei de cuidados, típicos dos que escrevem memórias, como omitirem fatos desabonadores de suas histórias ou estórias. É claro que, no meu caso, uma tentativa de omiti-los acarretaria a absoluta inexistência de fatos a registrar, pois cada frase escrita deveria ser imediatamente delatada, pela simples razão de que nunca pratiquei um ato sequer que pudesse ser considerado como inteiramente sintonizado com os bons costumes, com o ordenamento jurídico ou com os preceitos religiosos em geral. Aliás, não sou solitário nisso, pois julgo que a humanidade em seu todo age assim, não escapando nem mesmo aqueles que ela elege como puros, castos e santos. Mas eu, ao contrário deles, sou um pilantra assumido. E aqueles pilantras enrustidos e que não têm a coragem de sair do armário, não só leram tudo o que escrevi, como passaram a me fazer perguntas capciosas acerta da minha conduta moral, como também me crivaram de questionamentos sobre pontos do texto que eles consideraram absurdos, incoerentes e insuscetíveis de acontecer, naquela intensidade, com um ser humano normal. Eu bem que poderia tê-los mandado para aquele lugar, não respondendo as suas perguntas. Mas como assenti em retornar ao rebanho classista, não ficava bem, justo naquele reencontro, cometer tal falta de educação e coleguismo. Em princípio, tentei enrolá-los dizendo que aquilo tudo não passava da mais rasteira literatice, eu que por aquele tempo enfiei a cara nos livros e nos filmes, sobretudo os de minha predileção, como os westerns e os de aventuras. Mas, apesar da minha proficiente lábia, a conversa não colou e eles queriam por que queriam explicações e mais explicações, sobretudo no tocante ao meu papel na beatificação, bem assim o encontro que eu tive com o mais novo casal real deste Continente. Também parti para uma desculpa típica dos que são pilhados em patifarias e quis os demonstrar que se encaixava em mim, feito luva, o instituto da irresponsabilidade penal, mercê da minha visível condição de louco. Mas, ainda que eles caíssem na minha lábia, eu mesmo me dei conta de que não era aquela a melhor argumentação, pois ela fatalmente se voltaria contra mim, enterrando de vez qualquer possibilidade de, por exemplo, eu ocupar cargos, privado do juízo e da própria condição de gerir a minha pessoa. De todos eles, a única pessoa que realmente tinha o direito de efetivamente me tomar satisfações era a minha esposa, sobretudo por eu ter me deitado com aquela loira de triste memória, além das dezenas que comi em minha curta, mas exitosa fase empresarial. Ela, sim, detinha o sagrado direito de se zangar comigo, de me bater e até manejar contra mim um pedido de divórcio, lastreado em minhas próprias confissões! Acho até que ela, como costuma acontecer com algumas mulheres em situação igual, poderia até me privar daquele complemento que, certa feita, na praia, se elevou feito as palmeiras circundantes. Como foi em sonho, eu, evidentemente, alegaria a atipicidade daquele inusitado acontecimento. Mas ela nada alegou, nada reclamou, nada duvidou, enquanto eles, estribados em tênues laços sindicalistas, se viram no direito liquido e certo de me encher de reparos e observações. E é por isso que acabo por cometer mais uma infração, das tantas cometidas na vida, que é escrever mais capítulos depois de um Gran Finale. É óbvio que milita a meu favor o fato de eu não ser um literato, o que, aliás, pode ser facilmente constatável a cada linha deste meu sofrido texto. É óbvio que delitos literários não costumam levar pessoas para a cadeia, senão pichadores pegos em flagrante escrevendo palavrões. Visto por este ângulo, eu bem poderia não espichar ainda mais o assunto e, de roldão, este próprio texto. Mas como eles querem e se julgam no direito de arrancar de mim mais esclarecimentos, que preparem para ouvir...       











Eu não minto!
Não sou budista, mas acredito em reencarnação, não como algo sobrenatural, tampouco paranormal, mas como um atributo tão banal nos humanos como falar, copular e palitar dentes. Também diferentemente do que pensam os budistas, creio que a reencarnação não pressupõe necessariamente a existência de um morto doador do espírito e de um vivente seu recebedor. A reencarnação de minha crença, sobretudo de minha própria experiência se dá, tanto em corpos distintos, como num mesmo corpo. No último caso – o mais comum – um mesmo corpo humano pulsante pode perder o seu espírito, viver sem ele por algum ou por muito tempo, como também receber outro, outros simultaneamente e até mesmo o próprio que dele se despregou. Não são raros também casos em que o corpo perde o seu habitual espírito e passa a ser habitado pelo espírito de um animal de outra espécie, grande ou pequeno, rastejante, caminhante ou alado. É óbvio que espíritos de amigos, colegas de trabalho, parentes, vizinhos, amantes, porcos, galinhas, cachorros, gatos, pulgas, cavalos, bois, passarinhos, lhamas, camelos, elefantes, cabras, ovelhas, piolhos, ácaros, vermes são os que mais se alojam em corpos humanos dessa hipótese. Há casos também em que o espírito de um objeto de estimação – uma boneca inflável, um automóvel ou uma mansão, por exemplo – dependendo do apego do estimador, aloja em seu corpo e passa a o governar. Nem todos, mas somente um percentual ínfimo da humanidade – onde me incluo – consegue voltar para dentro de si e se inteirar da sequência exata de espíritos pela qual passou, tanto no corpo presente, como em corpos antecedentes. A maioria das encarnações costuma ser instantânea, mas muitas duram lapsos de tempo de até décadas, como uma que me aconteceu ao receber o espírito de Marylin Monroe. Eu, por aquele tempo, não tinha a expertise que hoje tenho e, por conta de minha ignorância, fiquei em dúvida se eu havia comido Marylin, o que gerou uma grande confusão em minha vida, culminada em meu suicídio e na transladação de meu espírito, junto com o dela e vários outros de menor importância, para este meu atual corpo. Os meus bilhões de leitores certamente não entenderão o porquê de eu fazer este extenso preâmbulo e não partir imediatamente para o desiderato do que me propus no fecho do capítulo anterior, qual seja desmascarar todos aqueles que duvidam de minha história. Chegarei lá! Mas antes devo elencar essas e outras considerações, imprescindíveis à excelência dos argumentos que irei brandir em suas caras deslavadas e deslambidas! Tive o privilégio de, por algum tempo, abrigar em meu corpo o espírito de Einstein. Penso que ele poderia ter permanecido comigo por muito tempo não fosse o de Isaac Newton que, não sei por que cargas d águas, deu de alojar justo em mim. Aí a minha vida virou um inferno, pois os dois brigavam o tempo todo sobre o movimento do tempo, enquanto a burralda de minha Marylin interior não entendia bulhufas do que eles diziam. Como o espírito de uma boneca inflável também se apoderara de mim por aquele mesmo tempo, Marylin o estapeava, enquanto Albert e Isaac tentavam acalmá-la, chegando certa feita ao extremo de acuá-la com o espírito de Charles, meu cachorro de estimação. Quase que enlouqueci, mas, conhecedor desta peculiaridade da humanidade, eu soube administrar toda aquela confusão sem necessitar de analistas, psicólogos, psiquiatras e afins. Aliás, por falar neles confesso que rôo de vontade de um dia receber o espírito de Freud e contar para ele as besteiras que eles cometem em seu sacrossanto nome. Mas voltando à vaca fria dos espíritos, a própria linguagem humana é uma prova do que ora falo, na medida em que o vocabulário de cada um em particular nada mais é do que a soma de espíritos que foram alojando paulatinamente em seus corpos: em primeiro lugar o espírito da mãe, depois o espírito do cocô, o da fralda, o da chupeta até chegar ao espírito de todos outros objetos que vão se incorporando ao longo da vida. Com todos esses espíritos em um mesmo corpo é que surgem os verbos, os substantivos, os artigos, os adjetivos, os numerais, os pronomes, os advérbios, as preposições, as conjunções, as interjeições, as frases, as orações, os períodos, a concordância, a regência, a crase, a pontuação e as figuras e vícios de linguagem. Eles nada mais são do que o resultado da briga e do bafafá de milhões de espíritos que costumam alojar num mesmo corpo.  Isso resulta em que a linguagem, ao contrário do que pensa a maioria, é o pior dos instrumentos nas relações interpessoais, causadora de guerras, revoluções, brigas e confusões. E seu caráter deletério deflui necessariamente da forma em que ela – linguagem – é adquirida por cada falante, escrevente ou pensante: uma maçaroca de milhões de espíritos verbalizando, adverbiando, substantivando, adjetivando, numerando, preposicionando, conjugando, interjeitando, regendo, craseando e viciando, tudo ao mesmo tempo! E já entrando no meu propósito de desmascarar meus abelhudos colegas, digo que toda a incompreensão deles em relação ao que escrevi – e que leram sem o meu consentimento – deriva justamente dessa algaravia dos espíritos que cada um traz em si, de maneira inconsciente. Visto sob esse ângulo, melhor eu não tentar me explicar, como me propus ao fim do capítulo anterior, pois com certeza, quanto mais explicações, mais dúvidas, mais inquirições, mais julgamentos, mais conclusões e mais confusões, enfim! Assim, ao invés de perder tempo com isso, melhor mesmo é eu bolar um plano de afugentá-los o quanto antes dessa minha confortável ilha...

































O Plano
Com a minha verdadeira loira no cantinho de minha cama, bolar planos foi algo que sequer consegui astuciar na noite que passou. Mas assim que o amanheceu, uma idéia lampejou em minha cabeça e eu saltei da cama pronto a colocá-la em ação, mesmo antes das abluções matinais. Metido na minha longa e alva camisola de dormir, transpus o imenso corredor, mas antes de chegar ao pátio da mansão, um coro ecoava o meu nome, entremeado de Vivas a Deus e a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas! Apressei então o passo e do alto da escadaria vi os meus colegas em procissão, mas carregando um andor literalmente vazio. Por instantes supus a ausência de imagem de santo ao fato de que elas inexistiam na ilha. Mas, tão logo me viram no alto da escada, gritaram: Salve São Carlin! Salve São Carlin! e me jogaram sobre aquele enfeitado andor! Petrificado e bestificado com todo aquele exagero, dei voltas e mais voltas em torno da ilha, emperiquitado naquela prancha de madeira, cujos colegas se alternavam na sua condução. A minha cabeça se esforçava em adivinhar o que fiz de tão prodigioso para alcançar a santidade. Alcançar a santidade simplesmente em vida, coisa que nem Jesus Cristo conseguiu e que o próprio Papa que ajudei canonizar teve que esperar mais de ano! Pensei no adjutório que dei em tal canonização, ao revelar o milagre que se deu comigo, completando a cota miraculatória que faltava! Mas achei isso sem força suficiente para me galgar não apenas ao posto de santo, mas do primeiro santo vivo da Santa Madre Igreja! Além do mais, eles próprios que haviam acabado de me canonizar eram os mesmos que ontem duvidavam de tudo o que escrevi no computador, inclusive da minha participação na canonização do Papa! Pensei que eles, aos escutarem por toda noite nossos gritos de amor, feito eu também recuperaram as suas perdidas tesões e, em razão disso, me atribuíram aquele milagre. Louco para me apear daquela prancha enfeitada e passar a limpo toda aquela confusão, eis que surge de uma das janelas a minha verdadeira loira, toda vestida de anjo, inclusive com um radiante par de asas e faz aumentar ainda mais a minha curiosidade e aflição. Aí pensei: se ela que nunca falhou comigo está agindo assim, eu de fato fiz por merecer a minha canonização! Confesso que, pela primeira vez na vida, desejei a minha morte, não por desespero, mas pela perspectiva de imediatamente me mandar para as cortes celestiais e lá gozar de meus privilégios e prerrogativas santificais, deixando aquela cambada ali na ilha. Como a minha loira estava apta a voar, eu não ficaria sem ela e perfeito restaria o plano que nem bolei! Então fechei os meus olhos e pedi que Deus me levasse. Com os olhos inteiramente cerrados, notei que o andor de repente deixou de dar voltas e passou a andar em linha reta. Em seguida, percebi que ele foi posto em algo parecido com uma canoa. De olhos fechados notei que ela se pôs a navegar rapidamente, enquanto um vento forte, misturado à areia, impedia-me de abrir os olhos. Quando finalmente os consegui abrir, eu já não via nem ilha, nem colegas, nem a minha Anja Loira! Prontamente conclui que em lugar de eu urdir um plano para afugentá-los da ilha, eles, sim, é que bolaram um e que resultou em meu desterro naquele andor flutuante. Dei uns bons gritos de filhos da puta, mas a minha indignação se dirigiu imediatamente na direção da minha Querida Loira. Como? Por quê? O que fiz? Não acredito! É um pesadelo! Ela enlouqueceu! Será que em sonho bradei o nome de outra! Será que em gozo gritei por Marylin? De repente parei de lamentar e, sem saber para que lado ficara a ilha, me pus a dar voltas em torno do andor, olhos postos na linha de mar circundante. De repente, ao longe, um pontinho branco apareceu e o meu coração se alegrou: É ela, com seu par de asas, vindo ao meu encontro! E o pontinho foi aos poucos se definindo, sendo possível notar o seu bater de asas. Então fechei os olhos novamente, elevando o meu gratíssimo pensamento aos Céus, certo de que em minutos a minha Loira Alada pousaria em nosso barquinho-andor, para que juntos pudéssemos navegar rumo a uma paradisíaca ilha naquele mediterrâneo mar, longe daquela cambada de ingratos colegas! Logo, o arfar de asas finalmente alcançou os meus ouvidos, mas antes de os meu olhos abrir, senti em minha careca a queda de uma pelota pegajosa e fedorenta, pois uma gaivota simplesmente me cagou!  Aí me desesperei novamente e me joguei rumo ao fundo do mar. Desci, desci, mas o meu fôlego parecia se encompridar e eu não conseguia me afogar. Vários minutos sem conseguir concretizar o intento de me matar, submergi e alcancei a borda da canoa. Subi e quando me pus de pé, vi a minha verdadeira loira se afastar, batendo com força as suas asas. Eu gritava que eu não havia morrido, mas ela, de costas para mim e certamente desesperada, não me ouvia e mais se afastava. Eu torcia para que ela olhasse para trás, mas nada, e ela desapareceu na linha do mar. 












No Céu
O peso da minha mágoa era tamanho que eu temia o barquinho afundar. Mas o alívio por não ter sido traído pela minha Adorável Verdadeira Loira compensava tudo e o barquinho singrava rapidamente o mar. Não era a primeira vez que me via na condição de náufrago! Em todas as outras eu me safei e não seria naquela que eu iria me estrepar. Mas as mágoas foram se dissipando uma a uma, como que varridas pelo vento forte e eu, diferente dos naufrágios anteriores sentia-me calmo e tranqüilo como jamais me senti em toda a minha vida. Estirado de barriga para cima naquele estrado de madeira todo enfeitado, eu cantarolava sobretudo trechos de óperas, como aquele em que Otelo e Desdêmona cantam o seu amor numa noite na ilha de Chipre. Mozart punha em minha boca Cosi Fan Tutte, mas eu me recusava a cantá-la, pois nem todas as mulheres agem como ele pensa, e a minha Loira é a prova disso. Eu também recusava Bizet, pois a minha Loira não é abusada como a cigana Carmen. De repente eu me levantava, aprumava meu corpo equilibrado naquele andor e deixava que o vento esvoaçasse a camisola de dormir em que eu estava vestido. E assim altivo, mas calmo e tranqüilo eu singrava aquela imensidão de mar. Meus cabelos e minha barba cresceram prodigiosamente, mas apesar da brisa salgada e do sol forte, sentia-os lisos, sedosos e perfumados, não aquela cafuringa dos naufrágios anteriores. Notava até que a minha pele ganhara viço e cor, mesmo eu estando naquelas condições tão adversas e ainda por cima sem comer ou beber. Eu simplesmente estava sendo poupado do flagelo de ter fome, além de inteiramente esvaziado do estoque de raivas, ódios e ressentimentos que acumulei ao longo de minha destrambelhada vida. Volta e meia, aves marinhas revoavam sobre o meu barquinho, desenhando lindas coreografias no céu e cantando alegremente. Elas se alternavam pousando doce e sossegadamente em meus ombros. Golfinhos e outros peixes, saltando ao redor do barquinho, completavam aquele lindo quadro, enquanto os sons do mar chegavam aos meus ouvidos como a mais delicada de todas as sinfonias. À noite eles, peixes e pássaros, eram substituídos na coreografia pelo piscar alegre das estrelas, pelo riso num canto da boca da lua e pelos milhares de meteoros que riscavam o céu, desenhando palavras e frases me louvando e me glorificando. Toda aquela desassombrada guinada em minha vida poderia ter me levado à inexorável conclusão que de fato eu fizera por merecer aquela procissão. Tudo sinalizava que de fato eu havia ascendido à condição de santo. Mas santos sempre chegam a esta condição quando morrem e muitos anos, décadas e séculos depois de morrerem! Nesse mesmo contexto, seria plausível que eu me pusesse a refletir se eu, sobre aquela canoa, estava de fato vivo ou se eu já estava morto. Plausível também seria supor que aquele mar circundante não era terreal, mas celestial. E assim me supus, como que eu estivesse sido transladado pelo Deus Mórmon para as plagas celestiais. Quando a procissão caminhou em linha reta, ela não me lançou feito um traste que se joga ao mar? Em verdade, eu fui arrebatado rumo aos céus, feito Maomé, ele embarcado numa carruagem de fogo e eu num barquinho todo enfeitado? Mas eu nada supunha nem desejava. Tudo em mim era quietude e mansidão. Tudo estava bom. Tudo estava ótimo e não havia espaço para algo questionar. Vivo ou morto, pouco importava, certo é que eu jamais experimentara uma paz interior tão completa e intensa. E assim, eu e o meu barco, deslizávamos docemente por aquela imensidão de mar azul! Por todos aqueles dias de navegação, não avistamos um palmo sequer de terra, mas certa manhã avistei uma garrafa pet boiando por perto. No céu da maioria das religiões um objeto dessa natureza é inteiramente incompatível, mas me lembrei de que no dos Mórmons uma garrafa pet é plenamente suscetível de ser encontrada em um mar celestial e, por isso, sosseguei. Mas, mais adiante, avistei outras garrafas boiando, sacos plásticos, camisinhas, lataria de carro e lixos de todas as espécies. Admiti num primeiro momento que o emporcalhamento de que foi vítima a Terra acabou por contaminar o próprio céu. Navegando mais sofregamente, por conta de tanto lixo batendo em sua proa, minha canoa seguiu seu rumo e eu, aos poucos, fui dando conta de que estávamos próximo ao litoral, pois centenas de torres de igreja (contei 365 pares delas) surgiam na linha do horizonte. Aí pensei: com tantas igrejas, estamos chegando realmente ao Céu! Aí me alegrei novamente. O barquinho continuou aproximando e eu me extasiando com a chegada a uma baía linda, embora tomada pelo lixo. Mais perto, vi que a cidade em sua orla estava em festa e, em razão disso, todas aquelas garrafas em minha volta se justificavam. Aí eu me levantei sobre o enfeitado andor e, vestido em minha longa camisola branca, ajeitei meus longos e sedosos cabelos, enquanto o barquinho se aproximava da praia. Uma imensa multidão parecia me esperar. Caminhões gigantescos, dotados de potentes amplificadores de som, carregavam animados músicos. Apesar do nauseabundo cheiro de urina, eu me regozijava com aquela apoteótica recepção e finalmente conclui que eu me transformara em Jesus Cristo. Sim! Cristo havia se encarnado em mim. Somente eu não havia me dado conta disso! Meus colegas, sim, tanto que me consagraram naquela procissão. Minha mulher também, tanto que não quis me seguir, ciosa de que não ficaria bem um Cristo casado, ela que não tem nenhuma vocação pra Madalena. Os pássaros marinhos, os peixes e as constelações. E agora aquela multidão que se espremia em todas as praias, na cidade baixa, na alta e até em seu pelourinho, todos me tomando pelo Messias e somente eu sem me dar conta disso! Finalmente o barro enterrou sua proa na areia e dele eu desci, certo de que a multidão me arrebataria sobre o andor, conduzindo-me por aquelas ruas, avenidas, terreiros e ladeiras em apoteótica procissão. Parado fiquei, pois ninguém sequer se atreveu a me olhar, senão um vendedor de picolé que comigo falou: - Que porra de fantasia irada, meu rei!, e uma vendedora de acarajé que disse que o meu andor era mais enfeitado do que jegue na Lavagem do Bonfim! Só então eu me dei conta de que havia chegado em Cu de Gato, justo naquela que foi a sua primeira Capital!   


Fingindo de bobo
Como me filiei ao partido do destino, isso muito antes de minha santificação, achei por bem não me precipitar e tomar satisfações com aquela gente que me ignorava. Tal qual sucedeu ao meu Antecessor, tudo aquilo fazia parte de um plano traçado pelo nosso Pai. Aí eu próprio pus o andor em minhas costas e comecei a andar pela cidade. Quase todos me ignoravam, exceto uns, dentre eles um pastor e um padre, que protestavam contra aquilo que imaginavam ser uma fantasia de carnaval. Cheguei a tentar me descansar sentado na escadaria de uma grande igreja que levava o meu nome, mas o Cardeal determinou que eu saísse dali. Procurei abrigo num templo evangélico, mas dele fui enxotado, não só por não poder pagar o dízimo e as ofertas, mas sob o argumento que eles não admitem que eu seja representado por imagens ou figurações. Aí então eu apelei para o que eu sempre soube fazer e que inclusive garantiu a minha fama dois mil anos atrás. Mas nem milagres que ali operei fizeram com que eles enxergassem em mim o Enviado de Deus! Salvei um sexagenário cantor de axé, com um pano amarrado na cabeça, segundos antes de ele ser vitimado por um infarto fulminante. Consertei o gerador de um trio elétrico no instante em que ele entrou em pane. Impedi um temporal que desabaria sobre a cidade. Curei a rouquidão de uma cantora quase de bunda de fora, mas nada disso foi notado por eles. Aí eu barbarizei e transformei em Canabis toda a grama da cidade e retive por três dias o fluxo urinário de todos os homens, a fim de que não mijassem nas ruas. Por último, operei o milagre da multiplicação de cacetes, cacetinhos, varas e acarajés. O meu ego cugatense sabia que carnaval dura três dias, mas que naquela cidade isso se multiplica por cem. Mas o Meu Outro Ego imaginava que tudo se normalizaria três dias depois, relevando e perdoando toda aquela festa mundana, mesmo porque ela entrou no calendário cristão como forma de todos se esbaldarem nas vésperas da quaresma. Então me acalmei e aguardei a ansiada quarta-feira de cinzas, certo de que eu seria finalmente notado e finalmente seria entronizado naquele andor e carregado efusivamente pelas ruas da cidade, do Estado, do País e de todo o mundo. Quarta-feira finalmente chegou, mas o furdunço continuou mais intenso do que antes, arrastando milhões de ensandecidos foliões pelas ruas, como que amarrados feitos cachorros na traseira daqueles imensos e barulhentos caminhões. E assim quinta, sexta, sábado... o mesmo turbilhão ensandecido me ignorando, me enxotando, me ridicularizando, até que ergui meus olhos aos Céus e bradei: Pai, afasta de mim este cálice! Meu grito foi ouvido pela banda que tocava sobre o Trio Elétrico e eles, na hora, pediram que eu continuasse cantando aquele velho sucesso de autoria do Gil. Eu não queria subir no Trio, mas a multidão me arrastou. Meu Eu Sagrado não queria cantar, mas o eu profano fraquejou e não resistiu ao coro “Canta!”... “Canta”... abriu o vozeirão e balançou a multidão. Cantei a noite toda em vários trios, inclusive no Expresso 2222. Eu simplesmente me tornara a revelação daquele Carnaval, mas algo de anormal abateu sobre mim, pois em pouco tempo meus longos e sedosos cabelos voltaram ao desgrenhado de antes, inclusive a minha velha careca, a minha pele perdeu o viço, meu semblante terno e doce se modificou e a minha alva túnica, que se manteve por todo aquele tempo limpa e passada, encardiu e se esmolambou. Aí a minha ficha caiu: Cristo simplesmente me abandonou! E a galera, me vendo tão diferente do que instantes antes eu era me fez descer do trio e quase que me linchou.























É claro que eu estava amando ser o receptáculo do espírito de Nosso Senhor. Quem não gostaria de ser a reencarnação Dele, ou de Buda ou de qualquer um destes Seres Luminosos que passam pela Terra, de milênio em milênio? Penso que fiz tudo certo, desde o momento em que Ele se alojou em mim. Agi com ternura e doçura. Dei a minha outra face. Sofri resignadamente. Só pensei e fiz coisas boas. Mesmo o fato de ter subido no Trio Elétrico, não o fiz por vontade própria, mas sim obrigado. A bem verdade nem cantei, pois eu, como todos que se apresentam ali, “cantava” em play back. Além do mais, Ele, que tantos milagres é capaz de operar, bem que poderia ter me impedido de subir no trio. Além do mais, em seu tempo no Oriente Médio Ele próprio andava em companhia de mulheres de vida airada e animava festas transformando água em vinho. Digo isso, para afirmar que Ele, ao me abandonar, foi injusto, contrariando tudo que grande parte da humanidade pensa Dele. Já ia ruminando tais pensamentos, quando uma hipótese faiscou em minha mente! Cristo, na verdade, não fugiu de mim! Cristo fugiu, sim, daquela cidade louca, Cristo fugiu de Cu de Gato, Cristo fugiu deste mundo sem conserto, enfim! Exonerado daquela sacratíssima função, fiquei a andar pelas praias, ora batendo carteiras, ora trançando tererês. Mas o meu maior sonho era juntar dinheiro e ir direto para junto da minha Adorável e Verdadeira Loira. Nem precisei dinheiro juntar, pois no dia de ontem, ao passar por uma sentada numa cadeirinha de praia, não acreditei, mas era ela que estava ali!